03 novembro 2010


Mar, a última fronteira

Em muitos aspectos, o mar permanece um grande mistério, mas os oceanos podem guardar a resposta para muitos problemas da Humanidade, do combate a doenças como o cancro às necessidades energéticas do futuro.

Basta mergulharmos a algumas dezenas de metros de profundidade e o mundo muda. À medida que descemos, a luz desaparece e o ambiente torna-se cada vez mais inóspito. A pressão aumenta nos olhos, nos ouvidos, por todo o corpo e depressa compreendemos que somos extraterrestres em grande parte do nosso planeta.

O mar representa 90 por cento do volume disponível para a vida no planeta. E, contudo, muito do que se esconde nas profundezas dos oceanos é ainda desconhecido para o Homem. É Mare Incognitum, como lhe chamavam os romanos, reclamando o velho lema de Jacques Cousteau, o mais célebre dos oceanógrafos: "Il faut aller voir" ("É preciso ir ver").

Mas, afinal, o que se esconde lá no fundo? Que tipos de vida habitam os oceanos? Quantas espécies existem? E onde vivem? Estas eram perguntas que, há uma década, não tinham ainda respostas definitivas.

"Existem muitas zonas por explorar, que nunca foram estudadas nem observadas directamente. O mar é um mundo imenso, em certa medida um pouco invisível. Não podemos apontar-lhe um satélite e estudá-lo.

A maioria da vida nos mares é microbiana: os microrganismos representam cerca de 50 a 90 por cento da biomassa marinha, calculando-se que existam uns mil milhões de tipos de micróbios diferentes.

Um mundo de intraterrestres
"Os fundos marinhos constituem, sem dúvida, a última fronteira terrestre", considera Fernando Barriga, director do Museu Nacional de História Natural. Este verdadeiro submundo habitado por "intraterrestres" é, na opinião de Barriga, a "mais promissora linha de investigação no domínio da geobiologia". O seu conhecimento tem não só revolucionado a forma de pensar e entender como funciona a Terra, como poderá ter um impacto significativo em diversos domínios das nossas vidas."

A biosfera profunda é uma fonte de novas moléculas, com aplicações variadas, da cosmética aos fármacos. Alguns organismos que habitam nas fontes hidrotermais submarinas e nas raízes profundas desses sistemas vivem sem problemas, rodeados de tóxicos como o arsénio e o mercúrio. Quando compreendermos como o fazem, poderemos criar tratamentos preventivos e/ou curativos para combater esses tóxicos.

A próxima droga contra o cancro, por exemplo, poderá vir do fundo do mar. Os compostos naturais são há muito uma grande fonte de inspiração para as farmacêuticas, mas a maioria das moléculas marinhas estão ainda por explorar, devido aos obstáculos que o processo enfrenta: os investigadores têm que retirar amostras do fundo do mar e analisá-las depois em laboratório.

Mas essa realidade está a mudar graças ao recurso à robótica. No Centro de Análises Químicas da Universidade da Califórnia em Santa Cruz, criado em 2007, milhares de compostos são retirados diariamente do fundo do mar e conduzidos por um tubo até robots, que depois os analisam. O trabalho permitiu já identificar dois novos compostos: um que mata os parasitas que causam a doença do sono e outro que destrói células do cancro da mama.

O fundo do mar guarda um tesouro incalculável
O fundo do mar pode guardar também a resposta às necessidades energéticas do futuro. A centenas de metros de profundidade, nos abismos dos oceanos, há um tesouro energético de valor incalculável, que muitos cientistas acreditam ser a última grande reserva energética do mundo: os hidratos de metano, estruturas cristalinas sólidas formadas por água e moléculas de gás, semelhantes ao gelo.

Trata-se de um recurso abundante, distribuído pelos cinco continentes, que, no seu conjunto, se estima conter pelo menos o dobro da energia de todos os outros combustíveis fósseis do planeta.

Impulso tecnológico
Os novos conhecimentos sobre os oceanos só têm sido possíveis graças aos avanços da tecnologia. Em grande medida, o fundo do mar é mais hostil que o espaço. A pressão é tão violenta que um simples jacto de água poderia cortar um corpo em dois. Para mergulhar a profundidades extremas é, por isso, preciso um submersível, um aparelho capaz de ir onde nem os submarinos convencionais conseguem. Há apenas seis no mundo aptos para descer abaixo dos 4000 metros.

O homem poderá nunca caminhar no fundo do mar como Neil Armstrong caminhou na superfície da Lua, mas há ainda muito oceano para conquistar. No mar salgado esconde-se a última fronteira da Terra. "Il faut aller voir", já nos lembrava Costeau. É preciso ir ver e descobrir.

Texto publicado na Revista Única do Expresso de 23 de Outubro de 2010

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