António Torrado:
"Já escrevi sobre tudo e mais alguma coisa"
Deve haver sempre uma estante fechada, mas de fácil acesso. Pode até escrever-se "livros proibidos" na prateleira mais alta da estante e deixar ficar uma escada por perto.
Ideias e memórias de António Torrado: "Eu sacava da biblioteca do meu pai os livros proibidos. Tinha uma chave. Abrir, abria-se bem, para fechar é que tinha mais dificuldade. Li muita coisa sem perceber o que estava a ler."
Mas também leu livros que entendia e de que gostava. O seu fascínio por romances de capa e espada fê-lo querer praticar esgrima. Mas foi traído pela vista e pelos óculos. "Sou um desportista falhado", diz, entre o resignado e o divertido.
Não estava previsto tornar-se escritor, mas aconteceu. Depois de uma tentativa de estudar Ciências Económicas para dar seguimento à empresa comercial do pai, percebeu que "não tinha jeito nenhum para aquilo". Foi então para Direito. Mas adormecia nas aulas: "Dava-me muito sono." Um dia, um professor disse-lhe: "Quando estiver com sono, não venha à aula. É que me desmotiva muito".
Compreendeu, mas envergonhou-se tanto que foi para a Faculdade de Letras. E estudou Filosofia. Acabou por se tornar escritor.
A capacidade única de criar enredos surpreendentes - de preferência para as crianças, mas também para os adultos - é sustentada por palavras enxutas, envoltas em marcas de oralidade. Na sua escrita, gerida com mão hábil de um dramaturgo residente, as contas do colar vão-se juntando no fio com que constrói contos, poemas e textos dramáticos. O olhar de António Torrado sobre as pequenas e grandes coisas, as pessoas, o mundo, afinado pelo registo da ironia, do humor ou da ternura abre o apetite dos leitores, que saboreiam o delicioso mil-folhas que é a sua obra.
Pelo primeiro texto que escreveu para o Diário Popular recebeu "cem paus" (€0,50). "Dava para almoçar com a namorada, lanchar com a namorada e levá-la ao cinema."
O conto curto é a sua forma ideal de expressão. "É o meu modelo de escrita: insinuar mais do que dizer; sugerir mais do que declarar."
António Torrado, 71 anos, já escreveu "perto de mil histórias". Mas também criou peças de teatro, letras de fados, argumentos para filmes e séries de televisão, escreveu textos para a rádio e poesia. "Já escrevi sobre tudo e mais alguma coisa."Os seus 40 anos de vida literária foram o pretexto para uma homenagem na abertura da XI Edição das Palavras Andarilhas em Beja, na quinta-feira.
In Jornal Público